Confesso que tive dificuldades para ler meu primeiro livro de Saramago. E essa dificuldade é a maior crítica que vejo em relação ao Nobel de Literatura. Todo mundo que conheço que não gosta dos livros dele, sempre diz a mesma coisa: "ah, é confuso"; "ah, não consigo passar da décima página"; "ah, ele não usa pontuação" (???). E eu concordava com eles até entender como ler Saramago. Obviamente que é impossível lê-lo de forma normal, como se leria qualquer outro livro. Ao pegar um livro dele não se deve ter a mentalidade "estou lendo um livro", mas "estão me contando uma história". Por algum motivo, depois que passei a ter esse olhar, seu estilo fez muito mais sentido e eu, de fato, tenho a impressão que tem alguém contando a história pra mim. No fim das contas, acabei tendo uma facilidade bem maior para ler um livro dele do que para ler livros "normais".
O escritor português define seu livro com uma única frase: "Não se pode confiar em deus". Na mesma linha crítica de "O Evangelho Segundo Jesus Cristo", José Saramago traz uma história um tanto quanto diferente de Caim, que após assassinar seu irmão, Abel, é condenado por deus (sempre escrito em letras minúsculas durante todo o livro) a vagar pelo tempo e espaço. De tal forma, então, Caim passa por várias passagens conhecidas da bíblia cristã. Contudo, as passagens da bíblia contadas pelo autor português são cheias de críticas não à religião e sua existência (o que é muito comum encontrarmos por aí), mas aos dogmas máximos religiosos em contraponto com as ações de seus praticantes e, principalmente, de seu deus. Nesse ponto, a obra portuguesa me lembra muito Preacher, que vai na mesma linha na crítica aos dogmas cristãos.
Escrito apenas em 4 meses, o livro é impregnado da ideologia "saramaguiana" sobre a bíblia: "a bíblia é um manual de maus costumes". É bem perceptível que esse é o clima do livro, mostrar como a bíblia é cheia de violência e sangue. Caim, durante todo a história se encontra com situações bíblicas absurdas para os padrões humanitários. O interessante nisso tudo é que há um humor negro, ácido em todas as passagens. Em nenhum momento a violência bíblica é tratada de forma 100% séria, é simplesmente impossível ler a narrativa e não ter um sorrisinho de canto de boca. É mais como um tapa que como um murro na religião. É leve, pega uma área grande, mas ainda assim é doloroso.
Vi uma entrevista dele para o Jornal da Globo, bem antes de ele escrever Caim, em que ele dizia uma frase que acaba permeando toda a história: "ninguém percebe que matar em nome de deus é fazer de deus um assassino?" Interessante que em sua mais nova obra, os fiéis não matam apenas em nome de deus, mas à mando de deus. Deus é mostrado praticamente como um autor intelectual de assassinatos e violência. Caim é o olhar crítico sobre isso tudo, é o questionador dos métodos de um deus sádico, que tudo faz para tolher o livre-arbítrio que deu aos homens. O livre arbítrio também não deveria deixar os homens livres para uma escolha de costumes e religião? O deus retratado é cruel e faz de tudo o possível para alcançar seus objetivos. Mas aí fica a pergunta: "tudo bem que é a interpretação de Saramago, mas a bíblia não retrata aqueles acontecimentos?" Sobre seu livro, o Nobel disse que não está questionando deus, ele está questionando a humanidade. Na verdade, durante todo o livro você acaba se questionando.
Ninguém melhor que a presidente da Fundação Saramago, e mulher do autor, Pilar del Río, para descrever o livro:
Caim não é um tratado de teologia, nem um ensaio, nem um ajuste de contas: é uma ficção em que Saramago põe à prova a sua capacidade narrativa ao contar, no seu peculiar estilo, uma história de que todos conhecemos a música e alguns fragmentos da letra. Pois bem, com a cabeça alta, que é como há que enfrentar o poder, sem medos nem respeitos excessivos, José Saramago escreveu um livro que não nos vai deixar indiferentes, que provocará nos leitores desconcerto e talvez alguma angústia, porém, amigos, a grande literatura está aí para cravar-se em nós como um punhal na barriga, não para nos adormecer como se estivéssemos num opiário e o mundo fosse pura fantasia. Este livro agarra-nos, digo-o porque o li, sacode-nos, faz-nos pensar: aposto que quando o terminardes, quando fizerdes o gesto de o fechar sobre os joelhos, olhareis o infinito, ou cada qual o seu próprio interior, soltareis um uff que vos sairá da alma, e então uma boa reflexão pessoal começará, a que mais tarde se seguirão conversas, discussões, posicionamentos e, em muitos casos, cartas dizendo que essas ideias andavam a pedir forma, que já era hora de que o escritor se pusesse ao trabalho, e graças lhe damos por fazê-lo com tão admiráveis resultados.
Parabéns pelo blog, Vitão! Vou ver se visito mais vezes seu blog! Como faço para segui-lo? Se quiser, visite o meu também: d2v1.blogspot.com
Abração!