De Shakespeare à HBO: a história do fim da República Romana em Julius Caesar e no seriado Roma.

Posted: quarta-feira, 21 de julho de 2010 by Marcus Seixas in Mesas: ,
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Não posso oferecer nenhuma justificativa plausível para a idéia meio súbita que me ocorreu em um sábado à tarde em que saí mais cedo da aula de alemão. Passei na livraria do Shopping Barra para comprar a coleção do Shakespeare em inglês; a verdade é que eu sabia que estava fazendo uma boa compra, todavia a idéia toda surgiu em cinco minutos e ler Shakespeare sempre foi um projeto a longo prazo, algo que faria quando realmente tivesse tempo livre, o que não tenho. De qualquer forma, eu à época era monitor de Direito Romano na UFBA, o que me fez lembrar de uma recomendação que o professor regente da disciplina havia me feito algumas semanas antes, quando me mostrou Julius Caesar e leu alguns trechos interessantes da peça (em especial o famoso discurso de Marco Antônio) enquanto fazia referências históricas. Resolvi, então, não estudar Sucessões, e ler a peça.
 

Ter um conhecimento prévio desta peça em particular foi importante para entendê-la; achei o início da peça um pouco “solto” no contexto geral do tema. Embora Shakespeare não seja, nem de longe, um autor intransponível, sua leitura não é fácil como um livro da Agatha Christie – também não é como o falecido Saramago e seu estilo 2a série de escrever – e logo a leitura vai revelando as informações, os personagens encontram-se nas conversas principais e o enredo se desenvolve propriamente. A linguagem rebuscada (minha edição mantém o inglês utilizado na época) e a estrutura em versos, com a qual não estava acostumado, foram empecilhos iniciais, mas nada que não pudesse ser superado. Minha maior surpresa foi o estilo envolvente e a originalidade com que ele compôs a personalidade dos personagens: a inquietude da alma de Brutus ficou evidente nos diálogos travados, sendo perceptível sua falsa segurança quando decide de uma vez por todas matar César.
 
Falando em César... bom, suponho que seja válido apresentar o texto. Julius Caesar é uma tragédia escrita por W. Shakespeare em 1599, portanto às portas do século XVII. Conta a história da conspiração contra o ditador romano Júlio César, seu assassinato e os fatos que sucedera à sua morte. Não foi a única peça shakespeariana centrada em Roma (o autor também escreveu Antony and Cleopatra e Coriolanus, este último ainda não lido por mim – a informação veio da Wikipedia em inglês).
 
A história tem como protagonista Marcus Brutus, um importante senador romano, e seu drama pessoal causado por um impasse a que chegou: se ele nada fizesse para impedir César de aniquilar a República, teria traído a pátria; e se tomasse providências contra o tirano, teria traído um amigo, alguém a quem jurou fidelidade. Fragilizado, pressionado, Brutus toma uma decisão difícil: salvar a pátria dos poderes ditadoriais de César, assassinando-o. A escolha do local (Senado) simboliza a natureza política do assassinato. Esta é uma pista de que Brutus honestamente comete o ato em nome da pátria: ele não é um homicida qualquer, e isto precisa ficar claro. Esta passagem da peça é muito bonita, e enfatiza a motivação heróica e patriótica de Brutus, enaltecendo-se tratar de um ato honroso em nome da República. Tanto é assim que Brutus refuta a idéia de desmembrar o corpo do tirano, lançada por um dos conspiradores, com uma bela passagem: 
Let us be sacrificers, but not butchers, Caius. We all stand up against the spirit of Caesar; And in the spirit of men there is no blood: O, that we then could come by Caesar's spirit, And not dismember Caesar! But, alas, Caesar must bleed for it! And, gentle friends, Let's kill him boldly, but not wrathfully; Let's carve him as a dish fit for the gods, Not hew him as a carcass fit for hounds.

O Ato III é o clímax da história, ocasião em que acontecem duas das cenas mais famosas da dramaturgia mundial; a primeira delas é o assassinato de César nos “idos de Março”, com as facadas de Brutus e Cassius e os demais conspiradores, culminando com a célebre pergunta do moribundo César, “Et tu, Brute?”. A segunda é o discurso de Marco Antônio após o funeral público de César. Brutus havia discursado primeiro, tentando justificar o assassínio. Contou a história de um César tirano e que queria dar um golpe na República. A oratória de Marco Antônio, no entanto, foi insuperável, contrapondo um tom emocional ao discurso frio e racional de Brutus. Começando com o chamamento “Friends, Roman, countrymen, lend me your ears”, ele lembrou a todos os feitos de um César conquistador, humilde, herói nacional; comoveu a platéia diante do corpo de César, e fez com que a multidão obrigasse os conspiradores a sair de Roma.
 
O Ato IV retrata a luta de Cassius e Brutus contra Marco Antônio e Otaviano (que, mais tarde, será Augusto) pelo poder em Roma, tudo isto com uma riqueza de detalhes incrível; Shakespeare capta o conflito da consciência de cada personagem, tornando a disputa pelo poder de Roma muito palpável ao leitor. 

A partir de certo momento a história adquire um tom descritivo (até aproximar-se do final, quando a tragédia fica evidente) e, por vezes, quase monótono – ao menos eu tenho um interesse genuíno em história de Roma e o conflito do fim da República, mas me pergunto se um leitor sem este interesse particular conseguiria se manter interessado durante toda a trama. Para quem não tem muita familiaridade com este momento histórico, a leitura pode ficar um pouco complicada, em especial dada a quantidade de personagens. Uma boa dica é assistir ao seriado Roma, lançado há alguns anos pela BBC em parceria com a HBO, em duas temporadas. Através de dois personagens fictícios, Lucius Vorenus e Titus Pullo, o seriado retrata os mesmos momentos históricos que Julius Caesar, indo ainda além e contando a história do segundo triunvirato e o fim da República, quando se deu a batalha entre as tropas de Otávio e de Marco Antônio, que foi vencido no Egito (vindo a se suicidar), fazendo com que o primeiro se sagrasse Augusto e se tornasse o primeiro Imperador de Roma.
 
O seriado é muito bem elaborado, e os atores são incríveis (destaque para Kevin McKidd e Ray Stevenson, como protagonistas, mas também para as coadjuvantes Indira Varma, que faz o papel de “Niobe”, e Lindsay Duncan, que faz o papel de Serviliae dos Júlios). Roma foi o seriado mais caro da história, cada episódio tendo custado cerca de 10 milhões de dólares para ficar pronto, totalizando duzentos milhões de dólares por temporada (dá para entender o motivo pelo qual as outras temporadas previstas foram canceladas). A produção foi fantástica, e a cidade foi muito bem representada (bem verossímil: com exceção da morada dos patrícios ou dos prédios públicos, Roma era, na realidade, um favelão; nada de ruas de mármore e colunas brancas como o pré-conceito poderia falsamente induzir).

A série também é bem completa: tem aventura, amor (inclusive cenas bem explícitas de sexo) e um pouco de suspense (bom, a bem da verdade talvez nem tanto suspense se você conhece a história). As tentativas de demonstrar como se portava a sociedade romana foram em geral bem-sucedidas, com a exceção de algumas iniciativas esparsas totalmente desnecessárias, como a do incesto entre Otávio e sua irmã, Otaviana. 

Em minha opinião a leitura de Julius Caesar é indispensável para qualquer pessoa que goste de História Antiga e tenha um razoável domínio do inglês, e é uma boa opção para começar a ler Shakespeare. O seriado Roma também é muito legal, e recomendo vivamente que se faça um “combo”, como eu fiz (confesso que quando assisti ao seriado minha impressão sobre Marco Aurélio mudou bastante). Um último alerta: tanto a peça quanto o seriado alteram em algum nível os fatos da história real, embora em geral as duas histórias sejam satisfatórias neste sentido. Para os curiosos de plantão, sugiro ler os artigos na Wikipedia em inglês referentes ao seriado e à peça para identificar as alterações nos fatos.


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4 comentários:

  1. Davi says:

    Cara, admiro a sua inteligência e cultura: não é qualquer um que se dispõe a ler um texto de Shakespeare em inglês! Já pensou em escrever em revistas de cultura?

    Só um toque: Em vez de "vindo a se suicidar" use "vindo a suicidar".

    Abração!

  1. Davi, fico feliz que você gostou do texto! Para dizer a verdade nunca pensei em escrever nada, só o fiz desta vez porque foi a pedido de Victor.

    Quanto à questão do verbo "suicidar-se", fiz uma pequena pesquisa e descobri que, na verdade, o pronome "se" deve ser utilizado sim. Ocorre que, não obstante a análise morfológica do verbo indique que o verbo significa uma ação reflexiva, o mesmo nunca existiu na lígua portuguesa desacompanhado do pronome "se" (vários linguistas confirmam esta informação); realmente é uma redundância, mas a língua culta a institucionalizou. Existem outros casos famosos em que ocorre uma redundância etimológica na língua portuguesa: os pronomes "comigo", "contigo", "consigo" e "convosco", por exemplo. "Comigo" se decompõe em "com" + "migo", esta última partícula sendo uma corruptela do latim "mecum" (ou "cum me" literalmente: "com eu"). Então comigo significa "com com+eu". O mesmo acontece com convosco ("vobiscum", do latim, + "com")e outros problemas. Outro caso: o verbo "conviver". Também corrompido do latim, novamente caímos na redundância da partícula "com" (conviver=viver com); mas, no entanto, ainda assim dizemos "o País convive com a impunidade". Enfim, temos que aceitar as esquisitices da nossa língua.

    Valeu pela força!
    Marcus

  1. Anônimo says:

    Muito bom o seu texto. Deu até uma vontade de pegar Dir. Romano, ainda que esse tal professor me cause algum receio... rs
    Ah, e a dica de começar a ler Shakespeare por essa peça foi ótima tb, porque Hamlet pode ser frustrante para nós iniciantes.
    Abraço,
    Anônima da FDUFBa.

  1. Anônimo says:

    Não vi onde o incesto de "Roma" foi "desnecessário". Como não convinha ser realista, a citação, mesmo sob ação de personagens fictícios, foi até abrandada. Se não levarmos em conta que Cleópatra era casada com um irmão (um molequinho), também retratado na série, pois se passou na mesma época, e o fato de as relações consaguíneas fazerem parte da grande balbúrdia sexual feita pela elite da época, não há nenhum excesso ali. Acontecia, bem menos que as "pederastias gregas" de antes, mas acontecia. Cada um com seus problemas, né? Carlo Filippo.

Nota

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